quarta-feira, 31 de março de 2010

Milagres

                                          
Ora, quem acha que um milagre é alguma coisa de especial?
Por mim, de nada sei que não sejam milagres:
ou ande eu pelas ruas de Manhattan,
ou erga a vista sobre os telhados
na direcção do céu,
ou pise com os pés descalços
bem na franja das águas pela praia,
ou fale durante o dia com uma pessoa a quem amo,
ou vá de noite para a cama com uma pessoa a quem amo,
ou à mesa tome assento para jantar com os outros,
ou olhe os desconhecidos na carruagem
de frente para mim,
ou siga as abelhas atarefadas
junto à colmeia antes do meio-dia de verão
ou animais pastando na campina
ou passarinhos ou a maravilha dos insectos no ar,
ou a maravilha de um pôr-de-sol
ou das estrelas cintilando tão quietas e brilhantes,
ou o estranho contorno delicado e leve
da lua nova na primavera,
essas e outras coisas, uma e todas
 para mim são milagres,
umas ligadas às outras
ainda que cada uma bem distinta
e no seu próprio lugar.
Cada momento de luz ou de treva
é para mim um milagre,
milagre cada polegada cúbica de espaço,
cada metro quadrado da superfície da terra
por milagre se estende, cada pé
do interior está apinhado de milagres.
O mar é para mim um milagre sem fim:
os peixes nadando, as pedras,
o movimento das ondas,
os navios que vão com homens dentro
 existirão milagres mais estranhos?

Walt Whitman, in "Leaves of Grass" (foto tirada da net)

domingo, 14 de março de 2010


                                
...] Chegavam às primeiras casas de Sintra, havia já verduras na estrada a batia-lhes no rosto o primeiro sopro forte a fresco da serra. E, a passo, o breque foi penetrando sob as árvores do Ramalhão. Com a paz das grandes sombras, envolvia-os pouco a pouco uma lenta e embaladora sussurração de ramagens a como o difuso a vago murmúrio de águas correntes. Os muros estavam cobertos de heras a de musgos: através da folhagem, faiscavam longas flechas de sol. Um ar subtil a aveludado circulava, rescendendo às verduras novas; aqui e além, nos ramos mais sombrios, pássaros chilreavam de leve; a naquele simples bocado de estrada, todo salpicado de manchas do sol, sentia-se já, sem se ver, a religiosa solenidade dos espessos arvoredos, a frescura distante das nascentes vivas, a tristeza que cai das penedias e o repouso fidalgo das quintas de Verão... Cruges respirava largamente, voluptuosamente. - A Lawrence onde é? Na serra? - perguntou ele, com a ideia repentina de ficar ali um mês naquele paraíso. 
Exerto dos “Os Maias” de Eça de Queiroz (foto tirada por Marta Almeida)

quarta-feira, 10 de março de 2010

O Poema Original























Original é o poeta
que se origina a si mesmo
que numa sílaba é seta
noutra pasmo ou cataclismo
o que se atira ao poema
como se fosse ao abismo
e faz um filho às palavras
na cama do romantismo.
Original é o poeta
capaz de escrever em sismo.

Original é o poeta
de origem clara e comum
que sendo de toda a parte
não é de lugar algum.
O que gera a própria arte
na força de ser só um
por todos a quem a sorte
faz devorar em jejum.
Original é o poeta
que de todos for só um.

Original é o poeta
expulso do paraíso
por saber compreender
o que é o choro e o riso;
aquele que desce à rua
bebe copos    quebra nozes
e ferra em quem tem juízo
versos brancos e ferozes.
Original é o poeta
que é gato de sete vozes.

Original é o poeta
que chega ao despudor
de escrever todos os dias
como se fizesse amor.

Esse que despe a poesia
como se fosse mulher
e nela emprenha a alegria
de ser um homem qualquer.

Ary dos Santos (foto tirada da net)